a rua, a noite e o fado
"NOITE gélida e silenciosa, chorando sobre a cidade. A chuva cai: lágrimas imperceptíveis, encharcando a rua.
Os prédios fechados e incolores, dobrados pelos anos, parecem quedar-se em oração. A prece é de tristeza, à luz bruxuleante do gás.
Lá longe, nas ruínas do Carmo, o sino do relógio quabra o silêncio. Doze badaladas firmes, compassadas. E o novo dia acorda, sonolento, iludido pela noite.
A rua negra lamenta-se.
Duas vozes, joviais e alegres, pararam a quietude da oite.
Risos francos:
- Venha morena! Quem disse que chove? Não vê que é o céu ciumento da nossa felicidade?
E alheia-se:
- Diga: quantas colinas já subimos? Lisboa é assim mesmo, moldada sobre montes?
De novo, os sorrisos, agora mais fortes, acordam a solidão da rua de noite.
No ar, repentinamente, uma doce balada de amor. Não chove, o frio desapareceu e há luar no céu da imaginação dos estranhos da noite.
- Seu guarda, o fado mora longe?
O guardião da noite apruma-se. Olha os estrangeiros.
A sua voz:
- Senhores, o fado está em toda a parte, por toda a cidade. Mora em cada porta que vedes! O fado é drama de todos: as suas histórias, os seus lamentos. Nós, os portugueses, atenuamos as nossas penas escutando-o.
- Verdade que o vosso povo é mesmo triste?
- Não! O humorista é também o maior sentimental. O poeta vive duas existências. Ora chora, ora ri. No meio da alegria, descobre um drama. Gostamos de meditar. O mar e o vento foram os nossos maiores inspiradores. Conhecemos a sua linguagem. Filhos de navegadores, vimos o mundo antes de outros povos. Separámos o real do irreal. Agora somos saudosos dos oceanos inabitados. A poesia começa onde a aventura acaba. Alma nostálgica, ausente da matéria, produz música de palavras.
As figuras esfumam-se na noite, rua acima.
A voz alonga-se na sala quase deserta de freguesia.
Gemem tristes as guitarras. O poema foi escrito por um homem do povo. Quase ninguém o conhece. Apenas o seu nome está registado, entre tantos outros. A história é um dos retalhos da sua vida, da nossa vida.
Os estrangeiros escutam a voz. Falam a mesma língua; são nossos filhos dilectos, a quem a distância fez esquecer os seus sentimentos de europeu ocidental. A alegria do novo continente e a mistura de raças fez nascer neles uma nova expressão musical. O Samba nasceu. O fado é genuíno; não gosta de viver fora da sua terra.
- Estranho modo de cantar! Porquê tanta tristeza?
Ele olha-a, consentindo. O bizarrismo da canção nacional surpreende-os. Escutam atentos. Depois, talvez as reminiscências do passado acordam neles. O fadista canta pela segunda vez.
- Você percebe mesmo o Fado? Gosta dele?
- Fado, minha querida, é um ritual do povo português! Ele fala dos seus problemas... do seu drama! Como quer você compreender ou amar aquilo que não está dentro de si?..."
De Milai Ferreira
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