07 maio 2008

Selecções Femininas -parte VIII



Pequena Crónica da Cidade - O desamparo das ruas



"O estado de limpeza de uma cidade é a melhor garantia de saúde dos seus habitantes. Aumenta o sentimento de dignidade dos moradores, inspira confiança a quem visita.
Há alguns anos atrás Lisboa tinha fama de cidade limpa e orgulhava-se disso. Existiam caixas próprias, colocadas ao alcance dos transeuntes, nas ruas e nos jardins, mais ou menos pintadas, com a palavra «lixo» bem visível e cuja utilidade a maior parte das pessoas tomava em conta.
As próprias autorideades colaboravam na manutenção da limpeza e encaminhavam os mais descuidados, fosse com simples advertências ou com a aplicação de multas. Era proibido papéis nocjão, assim como cuspir e improvisar retretes nos recantos. Os moradores das casas não podiam atirar porcarias das janelas e sacudiam os tapetes a horas certas.
Todos lucravam com tais disposições porque o asseio só pode manter-se com a compreensão e respeito dos utentes.
Nesse tempo as donas de casajuntavam o lixo em caixotes de madeira que, algumas mais cuidadosastinham o cuidado de trazer esfregados a escova e sabão. Havia o incoveniente de os desperdícios ficarem muito ao alcance dos gatos e cães vadios, que os espalhavam, na ânsia de encontrar bocados comestíveis.
Para evitar o mau efeito do lixo no chão, foi decretado que os moradores adquirissem, obrigatoriamente, recipientes de folha com tampa. A ideia parecia boa, mas levantaram-se protestos, que a aquisição importava numas dezenas de escudos, que talvez não conviessse a todos e houve muitos refractários.
Os empregados da limpeza tinham ordem para levar os recipientes fora de lei. Então, as donas de casa rebeldes, passaram a embrulhar os desperdícios em jornais que vinham colocar à porta, dentro das horas que permitiam a sua recolha. Outras, mais despachadas e habitando em ruas de pouco trânsito atiravam os embrulhos da janela.
Depois, o recipientes de folha enferrujaram e estragaram-se. Entretanto, tinham começado a aparecer baldes com tampo de modelo semelhante aos de folha. Sob o ponto de vista funcional não eram maus. Suportavam mais lavagens, não enferrujavam, enfim, havia que considerar, acima de tudo, o seu baixo custo.
Os serviços municipilizados passaram a fechar os olhos à invasão do novo recipiente. Talvez fosse uma solução para os famigerados embrulhos abertos na calçada. Poucas pessoas haveria que não pudessem dispor de dez escudos para comprar um dos mais pequenos baldes, tão necessários ao arranjo do lar. Porém, agora, o hábito das folhas de jornal criara raízes. Depois, matéria atrai matéria, quem vê um monte de lixo com meio metro de diâmetro também pode ver o dobro ou o triplo, porque não despejar as coisas ali mesmo, à porta, sem mais preocupação de embrulhar e disfarçar? Primeiro, pela calada da noite, a seguir a qualquer hora do dia, os montes foram crescendo.
Hoje a situação é confrangedora. O lixo atirado à toa, o agravamento da falta de braços, mantêm as ruas num estado lastimoso. Mesmo nos passeios largos os transeuntes têm de caminhar com cuidado, em ziguezague, por entre porcarias de toda a espécie.
Ainda quando não há coisas à vista é impossível remover a sujidade incrustada no empedrado dos passeios. No Verão as moscas pululam. Assaltam as habitações em grupos sucessivos, instalam-se, mau grado as contínuas bombagens de insecticida, pois se um grupo morre outro aparece. Moscardos enormes entram zumbindo, pela janela, estragam qualquer peça de carne ou peixe que tenha ficado ao seu alcançe. Tornaram-se tão abundantes e resistentes, estes insectos que, mesmo no Inverno não deixam de aparecer. Há invasões de mosquitos, uma calamidade. Em especial no último Verão o número de pessoas mordidas, na cidade, por insectos venenosos e desconhecidos foi enorme.
Não considerandoos malefícios reais o aspecto inestético era já suficiente para causar alarme.
Vêem-se coisas deveras chocantes ao abandono na calçada. Coisas de que outrora se costumava falar baixinho e, embora naturais e humanas, nada têm de agradável e seria melhor usar e destruir nos bastidores.
No meio de tudo isto os ratos prosperam e podemos vê-los com frequência, médios e luzidios, passar ao longo das paredes ou remexer os monturos. Se por qualquer motivo a ordem fosse alterada e um vírus de carácter epidémico se estabelecesse na cidade os ratos propagá-lo-iam com a rapidez de um rastilho.
O cuspo no chão, para não lhe chamar coisa pior, torna-se repugnante, agressivo para qualquer estômago sensível. Nem as escadariasdos edifícios, os acessos ao metropolitano, os corredores subterrâneos escapam à sanha do cuspo, que tanto horroriza outros povos e os faz dizer «homem que cospe na rua só pode ser italinao, espanhol ou português».
Ultimamente ouve-se falar de casos de tuberculose, num ritmo que parecia ter sido ulttrapassado. Existirão vários motivos para esse recrudescimento de micróbios, porém a falta de certos cuidados de higiene não será um deles?
Retretes improvisadas, são às centenas. Não falo dos biombos de madeira armados para os trabalhadores da construção civil, mas de todos os cantos e recantos, que os desníveis das frontarias e as colunas dos prédios, em especial na parte nova da cidade, exalam um terrível mau cheiro e revelam coisas cuja descrição pode chocar, mas não podemos deixar de ver mo mais curto passeio a pé. - Veja-se a Avenida Rio de Janeiro, as imediações do mercado de Alvalade, certos troços das avenidas de Roma e Estados Unidos, etc.
O desmazelo, a incúria e a falta de respeito parecem ter-se apoderado de grande número de pessoas, talvez porque os mais responsáveis passam velozmente, de automóvel e não podem ver o que vai pelas calçadas.
Se as coisas assim continuam e com a natural tendência para agravar, haverá tempo em que só de carro será possível andar pelas ruas e, quem pretenda manter os sapatos a salvo, da porta de casa até ao seu transporte caminhará sobre poldras, coomo nas travessias dos regatos de aldeia."

Por Maria José de Miranda

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