21 abril 2008

Selecções Femininas - parte I

Ao lado da minha Brother 210 encontrei uma revista feminina de Fevereiro de 1967 - Selecções Femininas, n.º 147.
Uma capa branca com lettring preto e vermelho, e Lídia Franco, "uma artista portuguesa de categoria internacional" compõe a totalidade dos 7$50 gastos nesta edição.
Ao folhear deparei-me com temas que ainda são tão actuais.
Assim, vou aproveitar este espaço para transcrever alguns artigos de maior interesse e apresentar os seus maravilhosos anúncios. Neste primeiro momento, vou transcrever as primeiras duas páginas do Pórtico com o título:

Um pouco mais de respeito pela sensibilidade das crianças

"Assim não está certo! Não está certo porque é crueldade. E a crueldade, quando atinge a sensibilidade de uma criança, torna-se, aos seus olhos inocentes, algo de monstruoso que pode marcar, para sempre, a sua alma sensível. A criança, é necessário não o esquecer, tem um poder extraordináriode absorção que lhe permite impregnar-se, mesmo involuntáriamente, de tudo o que, bom ou mau, se passa à sua volta. Atente-se, por exemplo, que a criança começa desde o berço a imitar os que a rodeiam: fala, porque ouve falar (na língua que ouve); anda na posição erecta, porque vê assim andar os demais; come, porque vê comer e daí por diante.
Sendo assim, não se compreende, pois, que não haja, por parte de certos adultos, um maior cuidado nas palavras e atitudes na presença de crianças. Esquecem, ou parecem esquecer, essas pessoas, que a educação, a cultura e o bem-estar de um povo podem ser medidos pelo comportamento das crianças que fazem parte desse mesmo povo.
No entanto, e por estranho que pareça, mais do que quaisquer outras, são essas pessoas as que mais indignamente erquem a voz para não só lamentar como acusar a juventude de hoje de falta de pudor, de irreverência, de inconformismo e de tudo o mais que, segundo elas, torna o mundo em que vivemos presentemente num mal disfarçado chiqueiro moral.
É certo que boa parte da juventude de hoje é turbulenta, inconformista, irreverente, exibicionista, materialista. Gosta de se divertir ruidosamente, comete exageros que chegam a confundir-se com barbarismos. Envereda pelo caminho do crime com uma naturalidade aterradora. Mas tudo isto porquê? Porque vive num mundo que não constuiu. Porque vê os seus maiores faltarem, cinicamente, aos mais fundamentais deveres. Porque ouve falar de paz e só lhe oferecem guerra. Porque raro tem oportunidade de se sentir pior do que os adultos. Mente porque lhe mentem. Vive desenfreadamente porque se sente com vigor, sem fé e sem confiança nos adultos.
Poder-se-á perguntar porque razão a nossa juventude (que felizmente de uma maneira geral, está integrada na parte que não é a «boa parte» a que atrás nos referimos) se comporta de forma a não nos desgostar tanto e, consequentemente, a preocupar-nos menos?
A resposta, a nosso ver, há que encontrá-la na nossa tradicional vida de família, ainda não totalmente adulterada por modernismos estrangeiros; no facto de termos sido poupados, na quase totalidade do nosso território (excepção para Timor) ao mais macabro conflito armado da história da Humanidade; por fim, ao nosso pendor para o sentimantalismo e à nossa formação espiritual, profundamente cristã.
Sendo assim, parece que, neste capítulo da educação moral e cívica, entre nós tudo caminha às mil maravilhas e que não há razão para temores. Mas aí é que está o erro. Se causar apreensões, isso não quer dizer que não façamos quanto em nós caiba para a amparar, para a defender, para a orientar cada vez com mais devoção, cada vez com mais carinho, cada vez com mais confiança no seu provir, cada vez com maior sentido das responsabilidades que sobre nós impedem.
Logo, temos que procurar captar a sua confiança, fortalecê-la e a ela, depois, corresponder.
Mas todos os esforços serão baldados, todas as boas intenções serão inoperantes, enquanto houver quem de ânimo leve, com absoluta e confrangedora ignorância dos mais elementares preceitos pedagógicos, se permita a comportamentos como o que teve ou tiveram um ou mais funciónários do Município de Almada e de que foram vítimas três jovens rapazinhos.
A história, que lemos num conceituado jornal da tarde, conta-se em poucas linhas. O seu significado, esse por incocebível!, chegaria para encher todas as páginas desta revista (e muito ficaria por escrever) se nos propuséssemos analisá-lo desenvolvidamente.
Há tempos, um pobre cão foi abandonado pelos donos. Passou fome, sofreu maus tratos até que três rapazinhos, condoídos da sorte do pobre canídeo, resolveram tomá-lo à sua guarda e elegê-lo companheiro inseparável das suas brincadeiras e de todos os momentos livres. Cuidavam-no com desvelado carinho e o fiel animal retribuía com afecto a dedicação. E aquela amizade entre crianças e bicho decorria normalmente. Até que alguém, «adulto», achou por bem pôr termos àquele estado de coisas: as crinças eram felizes com o seu cão, o cão era feliz com os seus jovens donos. Havia, pois, que acabar com tão «incomodativa» amizade.
Como se deve calcular, às crianças nunca ocorrer que, para ter por amigo sincero um pobre cão, fosse indispensável pagar uma licença. Mas alguém, «adulto», zeloso dos interesses municipais e da saúde pública, denunciou os jovens donos do canídeo de propriedade ilegal do mesmo: falta da licança camarária e demais preceitos legais.
Perante a denúncia, os serviços respectivos prepcederam de acordo com a lei: o animal foi levado para o canil municipal. Para o resgatarem teriam os seus jovens donos de pagar a respectiva multa, a alimentação do bicho durante o tempo que este estivesse no canil e ... a tal licença, cuja falta estivera na base de todo o imbróglio.
As três crianças, dando mostras de uma determinação que deve ter feito corar certos adultos, reuniram as suas modestas economias, abriram uma subscrição e conseguiram assim reunir uns centos e poucos escudos. Com esse dinheiro todo, com o qual pensavam poder comprar o Mundo, lá foram, ufanos da sua força de vontade, felizes por irem poder desfrutar da companhia do fiel companheiro, para resgatar o pobre cão. Mas, ao contrário do que supunham, a «sua fortuna» não chegava parra comprar o Mundo, nem mesmo para pagar o resgate de um cão indocumentado.
E é então que começa a maldade sem nome. É então que aquelas três crianças são vítimas da falta de compustura (chamemos-lhe assim...) de um ou mais funcionários rudes como granito que informaram as desoldas crianças de que a quantia a pagar pelo resgate do cão era muito superior àquela que eles tinham conseguido arranjar e que, por isso, deviam arranjar o resto. Caso contrário (pasmai, ó gentes) o cão seria abatido para depois servir de alimento às feras do Jardim Zoológico de Lisboa...
Calcule-se a aflição, o choque emocional sofrido pelas três crianças. O seu cão iria ser dado a comer às feras, caso elas não arranjassem mais dinheiro.
A revolta e o desânimo instalaram-se nas suas almas inocentes, onde não ficaria, a partir de então, espaço para a fé, a confiança, o respeito e a amizade que todas as crianças têm indispensável necessidade de sentir pelos adultos.
Felizmente, mais uma vez a União Zoófila interveio, chamando a si a incumbência de salvar, não só a vida de um cão, mas o que é mais, mesmo muito mais, a confiança abalada de três crianças.
Bem haja a prestimosa União Zoófila pelo seu magnífico gesto, e oxalá os funcionários municipais que tão desamorosamente se comportaram saibam, de futuro, melhor coordenarem as suas atribuições profissionais com a compreensão que é devida a todas as criaturas e mais particularmente às crianças."

***

Uma história com final feliz mas que poderia não ter e trazer consequências maiores na estabilidade emocional destas crianças. Gostava de destacar que ao longo desta intervenção, encontrámos temas tão actuais como o abandono de animais, a postura e comportamentos dos portugueses em geral e dos funcionários públicos em especial, a necessidade de socialização das crianças, a questionável educação cívica e moral aplicada ainda nos dias de hoje.. enfim.. é certo que em Fevereiro de 1967 já existiam estas preocupações sociais e infelizmente continuam a persistir e agora de forma mais acentuada. Porquê? 41 anos não foi o suficiente para alterarmos a nossa mentalidade e com isso melhorar as nossas atitudes e comportamentos. É triste, mas é a verdade... Eu pergunto, quanto tempo mais será necessário?





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