Chuva
Dois amigos encontravam-se numa esplanada a beber um café, em pleno mês de Janeiro.
Ao lermos este parágrafo estranhos de certo a junção das palavras esplanada e Janeiro. Pois é. Estranhamos e logo entranhamos. E assim foi. O mês de Janeiro permitiu belos serões em esplanadas, apanhar os raios de sol que incidiam, doentiamente, sobre as nossas cabeças descobertas e despreocupadas. Despreocupadas de tal forma que até nos esquecemos que durante todo este Inverno só o frio foi rigoroso. Sim. Porque a chuva ainda não apareceu.
Agora, pondo-me ao lado destes dois amigos numa esplanada soalheira, daria por mim a pensar em alto – “Este ano o governo ainda terá que subsidiar os vendedores de chapéus-de-chuva.”
De certo não será assim, mas quase. A falta da chuva faz-se agora sentir de uma forma mais preocupante. E se pensarmos que todos os santinhos ajudam a descer, enganamo-nos. A chuva não desceu. E o que faz o povo miúdo quando nem a chuva miudinha chega? Procissões…
E pronto! Dou por mim, novamente, na companhia daqueles dois amigos, com um café e um copo de água a acompanhar.
Oiço-os a conversar.
Falam da falta de água.
Março 2005
Estante
A minha estante. Nunca antes tinha pensado nela. È uma estante de ferro, de cinco prateleiras montadas pelo meu pai. Imagino-a como um prédio de habitação.
A primeira prateleira, a contar de baixo, está repleta de livros, dicionários, catálogos de moda, dvd’s, cd’s e arquivadores. Sim. Seria deste modo que eu a descreveria. Mas agora reparo, é nesta prateleira que eu deixo sempre as minhas chaves de casa. Entro em casa e zás-tráz, atiro-lhe com as chaves.
È uma prateleira muito prestável. Se calhar é devido à sua altura, um palmo abaixo da minha cintura.
Humm… boa altura.
E além das chaves, objecto constante mas não permanente, esta prateleira tem ainda a moldura de madeira com a fotografia dos meus pais. Ainda me lembro quando os fotografei. Tínhamos ido à deriva, percorrer o Sul do país durante quinze dias, acampando sempre nas barragens alentejanas e visitando toda a Costa Algarvia e Vicentina. Belas férias. Creio que a partir daí nunca mais voltei a passar férias com eles…
Já no andar de cima, observo todos os meus objectos pessoais. Nele está um cesto de verga, forrado de tecido em tons de branco e bege, cheio de produtos de higiene e beleza. Encontro três “contentores” onde guardo as minhas vaidades. Ganchos para o cabelo, brincos, anéis, pulseiras, colares, pregadores.
E ao seguir com o olhar todos estes objectos, vejo que tenho a fotografia da Maggie. Afinal esta prateleira também suporta o ligeiro peso da forte saudade que sinto…
Segunda prateleira a contar de cima ou quarta prateleira a contar de baixo, onde livros e cadernos são o cenário de fundo.
Os cadernos e livros.
No andar de cima, a última ou a primeira prateleira – como preferirmos – é onde se acumula tudo o que não cabe nas restantes:
O jogo Monopoly.
As revistas Vogue.
O antigo aquário do Emanuel.
A máquina fotográfica.
A caixa das fotografias.
Muito pó.
Nunca dei muito valor a este objecto – estante.
E no entanto, o que seria do meu espaço sem ela?...
Não. Não me esqueci da terceira prateleira, a prateleira intermédia. È no meio que está a virtude.
Sem título
O nosso pensamento é rápido como uma lebre feroz ou lento como um caracol com os corninhos ao sol. È falso como um gato vivido ou verdadeiro como um cachorrinho. È malandro como um macaco bebé, sensível como uma andorinha ou agressivo como uma leoa que caça.
O nosso pensamento consegue ser saudável e doentio.
Em certos momentos, consciente e nesses mesmos momentos completamente inconsciente.
Escuro que nem trevas e tão claro que nem a água pura.
Ele pode ser o nosso melhor amigo e o nosso pior amigo.
E então?
Bem. O nosso inimigo é rápido ou lento. É falso ou verdadeiro. Malandro, sensível ou agressivo.
O nosso inimigo consegue saudável e doentio.
Em certos momentos, consciente e nesses mesmos momentos completamente inconsciente.
Escuro que nem as trevas e tão claro que nem a água pura.
Ele pode ser o nosso melhor amigo ou o nosso pior amigo.
Como poderão estes dois objectos serem tão semelhantes em tão semelhantes definições? Ironia? Destino? Ou simplesmente – “ o nosso pensamento é o nosso maior inimigo”?
Sem título
“Tinha estado doente durante muito tempo. Quando chegou o dia de sair do hospital, já mal sabia andar, mal conseguia lembrar-me de quem é que eu poderia ser. Faça um esforço (…)” diziam-me os enfermeiros que me tinham acompanhado dentro do hospital.
Todos os enfermeiros e médicos sempre foram muito pacientes e calmos. A sua positividade e generosidade foram fundamentais para a minha recuperação. Eram todos muito inteligentes e discretos, apesar de exibirem as suas batas brancas que até doía ao olhar.
Não sei se por sorte ou por qualquer outra razão. Todos os docentes do meu hospital sempre me trataram maravilhosamente.
Até um dia… O meu novo médico era um homem elegante com uns grandes olhos negros, pele bronzeada e cabelos lisos pretos. A sua postura perante os seus doentes era de arrogância, desprezo sem qualquer vontade de nos ouvir.
Este senhor doutor era, exactamente, o oposto de todos os outros que envergavam aquelas batas brancas. Era um médico pessimista e sem qualquer esperança pela vida. Tinha-me dado como morta. Porque seria ele médico?
Mas, “agora que eu desmentira as previsões e que, por alguma razão, teimara em não morrer, que escolha é que eu tinha senão viver como se uma vida futura estivesse á minha espera?”
Excertos do livro “A noite do Oráculo” de Paul Auster.
Sem título
Cheguei. Cheguei à cidade. Cidade pequena e aparentemente pacata. Cheguei ao local onde já devia ter chegado. Cheguei e estacionei-me a um canto a analisar.
Muitas pessoas passeiam os seus distintos corpos pelo pátio da entrada. Uns sorridentes e estridentes, outros nem tanto. Uns balançam os seus corpos jovens, outros contrabalançam os seus corpos, mais usados, de um modo estático. Uns deslocam-se em grupo. Grupos pequenos de duas, três pessoas. Grandes grupos, com um número que não consigo contar. Outros movem-se solitariamente.
Volto a analisar. Analiso melhor. Todos trazem consigo malas e pastas, sobem e descem a escadaria principal.
Parecem todos iguais.
Maio 2005
Sem título
Subi as escadas com o intuito de aprender um pouco mais. Dirigi-me até à sala e procurei-o. Já o conhecia de vista. Sabia como ele era: quadradão e muito pesado. Sabia também, que iria encontrar tudo nele. Mas eu não queria encontrar tudo. Encontrei-o.
Comecei pela letra C.
“Contraste, s. m. efeito de acentuação de uma oposição qualitativa ou quantitativa entre duas coisas ou pessoas das quais uma faz realçar a outra; (…)”
Continuei a procurar, desta vez pela letra S e encontrei “Semelhança, s. f. qualidade de semelhante: parecença; analogia; conformidade; (…)”.
Li e reli. Ao lê-las ocorreu-me de imediato a ideia de contraste bem vinculada entre estes dois termos. O contraste poderá ser, perfeitamente, o antónimo de semelhança. Ou seja, o contraste é o contraste da semelhança. É engraçado pensar nisto.
Um é masculino, outro é feminino, ora aí está outro contraste!
E na continuidade do meu pensamento, ocorre-me a ideia de semelhança. De facto, estes antónimos poderão ter as suas semelhanças. Se não, vejamos. Tanto um como o outro só funcionam entre dos objectos, os dois pertencem à mesma classe gramatical e quase que têm o mesmo número de letras na sua constituição.
Parei. Fechei-o.
Fico feliz por este momento.
Sem título
Feriado, dia 10, dia de descanso. Porém, nem para todos, eu estava ali às voltas com o meu primeiro exemplar.
Era algo muito importante para mim. Sabia que o primeiro era essencial para todos os outros, se houvessem outros…
Feriado, dia de sol, dia de calor. Olho para o relógio digital
17.05H
Fiz rascunhos, muitos rascunhos. Li e reli.
23.05H
O primeiro exemplar estava terminado.
23.06H
Só eu sabia o quanto estava feliz.
00.35H
Adormeço radiante.
Passados 365 dias e 6 horas – Feriado, dia 10, dia de descanso. Porém nem para todos, eu estava ali às voltas com o meu segundo exemplar.
Passados 366 dias e não sei quantas horas – Feriado, dia 10, dia de descanso.
Eis o meu terceiro exemplar.
23.05H.
62
Ao descer a rua cheia de lojas, montras, manequins vestidos e semi-nus, electrodomésticos, cefés, esplanadas. Calçada, calçada azul, colorida, cheia de luz e barulho. A rua é sempre a descer. Casas resturadas, casas velhas, a cair; muitas portas, muitos números, muitas vidas, muitas mortes?
Obsrevo tudo o que me rodeia: as pessoas saem, entram e ficam entre as portas; falam, gritam, sussurram, alegres, tristes, nervosas, cansadas ou acabadas de acordar; são pessoas.
Continuo a descer.
Vou girando a minha cabeça, o meu olhar e encontro o onze no lado esquerdo, o doze no lado direito. O treze, o quinze, o dezasete, o dezanove, o vinte-um, o vinte-três, o vinte-seis, o vinte-oito e o vinte-nove, o trinte-um e o trisnte-dois, no meu lado esquerdo. O cartoze, o dezaseis, o dezoito, o vinte, o vinte-dois, o vinte-quatro e o vinte-cinco, o vinte-sete e o trinta, no meu lado direito.
Suspiro, cheguei.
Abri a pequena portina de metal, fria, gasta, amolgada, da caixa do correio. Com um certo de jeito, consigo reitrar a chave que lá se encontra, colada com fita cola.
62.
Escadas, muitas escadas com degraus altos, sujos, acompanhados por um corrimão de ferro mio solto, sujo, torto, cheio de ferrugem.
Subo até ao topo. É escuro, sombrio, frio, medonho.
Mais escadas? Sim. Mas desta vez, cobertas de carpete verde de veludo, sujo, gasto, frio, mal tratado, infinito?
Não. É apenas ilusão óptica. O espelho de ferrugem, pó e partido nos cantos, dá-nos a sensação da continuidade da escadaria.
Espelho ao topo das escadas. E eu subo.
Não é ilusão, a escada continua. Tem um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez degraus sujos, forrados a veludo verde velho, cheio de pêlos, nódoas, pó e de mais alguma coisa que possivelmente desconheço.
Termino. Um corredor sem luz, escuro, sombrio tal como a escadaria. Espreito, consigo ver quatro portas brancas. Haverão mais? Brancas, mas também sujas, mal tratadas, velhas, com pequenos e descoldados autocolantes.
Há um interruptor. Click, nada de novo, nem uma só luz acendeu para me iluminar.
Sigo pelo corredor, pisando aquele chão, continuamente me parece estragado.
Vou até ao fim.
A porta empenada, ao meu lado direito, está entreaberta.
Espreito.
Encontro aquilo que procurava.
Junho 2005
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